O Caminho de Santa Fe

Por Luis Rocha, Março de 1998

A Cidade Perpetuamente na Fronteira

A Cidade Diferente

Santa Fe é provavelmente o que menos se espera de uma cidade dos Estados Unidos da América. De facto, quando pela primeira vez aquicheguei no Natal 1994, a surpresa foi total. O meu caminho de Santa Fe seguia então o trilho das fronteiras mais audaciosas da ciência e tecnologia que por estes lados do mundo se praticam. O que eu não esperava era encontrar uma cidade com uma cultura e história tão próprias, bem como uma vocação tão grande para procurar posições sempre na fronteira da obra humana.

Santa Fe situa-se no norte do estado do Novo México, nas montanhas da Serra de Sangre de Cristo, que fazem parte da Cordilheira das Montanhas Rochosas. A uma altitude de cerca de 2.135 metros acima do nível do mar, a cidade posiciona-se nas margens de um afluentezito do famoso Rio Grande, que mais a sul se torna na fronteira entre os Estados Unidos e o México. Localizada no ponto em que o planalto deserto se encontra com as florestas de pinheiros Ponderosa e de Aspen (um tipo de Álamo) das montanhas Sangre de Cristo, cujo cume atinge 3.660 metros, Santa Fe propicia ao mesmo tempo o Sol e o céu estrelado do deserto, bem como a frescura das montanhas. De facto, esta parte do mundo é famosa pelas excelentes condições para o Ski.

Além da beleza natural, o que sobressai imediatamente em Santa Fe é a sua arquitectura muito particular. Ao contrário de outras cidades americanas, é muito fácil encontrar casas com mais de 200 anos em Santa Fe. O Palácio dos Governadores (1610) e a Capela de São Miguel (1626) são respectivamente o edifício governamental e a igreja mais antigos dos Estados Unidos. Santa Fe como capital da colónia real do Novo México precede, por cerca de 10 anos, o "início mitológico" desta nação, com a chegada em 1620 dos peregrinos do famoso Mayflower a Plymouth no Massachusetts.

Devido a esta antiguidade, as ruas da cidade seguem tortuosamente lembrando mais cidades Europeias do que Americanas. A semelhança com a Europa é, no entanto, mais evidente em detalhes culturais como a iconografia católica e o vestuário, com influências espanholas óbvias, do que na arquitectura que é nitidamente de origem americana pré-colonial com alguns elementos mediterrânicos.

As casas castanhas feitas de argila ou adobe, raramente com mais do que dois níveis, seguem fluidamente as linhas dos terrenos em que se encontram, resultando numa integração quase mágica com a paisagem natural. Vigas expostas de madeira escura, janelas e portas de madeira, pintadas tipicamente de azul berrante, oferecem um contraste, provavelmente de origem mediterrânica, com o que são essencialmente formas nativas encontradas em construções pré-coloniais nesta área. Esta arquitectura é a demonstração mais visível da cultura única de Santa Fe que se situa algures entre a América pré-colonial, a Espanha colonial, e a América anglo-saxónica moderna.

Os Anasazi e os Povos do Vale do Rio Grande

Pouco se sabe sobre as populações nativas do Novo México anteriores a 1300. Hoje em dia essas populações são conhecidas como o povo Anasazi, um termo dos índios Navajo que significa "os antigos", ou na realidade "os antigos inimigos". Existem vários parques nacionais americanos dedicados a preservar as ruínas das habitações deste povo, que ocupou o sudoeste americano entre os séculos I a XII. Exemplos destes parques são o Bandelier National Monument em Los Alamos, perto de Santa Fe e o parque da Mesa Verde no Colorado.

Todos dias ao guiar para o meu emprego, no Los Alamos National Laboratory, vejo as cavernas que em tempos longínquos foram habitadas pelos Anasazi. Estas cavernas, que se estendem ao longo dos inúmeros canyons por muitos quilómetros, como dedos saindo das montanhas Pajarito (um vulcão pré-histórico) que formam Los Alamos, são adornadas por estranhíssimos petroglifos que me transportam a uma realidade pré-histórica completamente diferente da Europeia.

Os Anasazi foram um povo agrícola que domesticou o peru e cultivava milho, abóbora e feijão nos vales frescos dos canyons das montanhas Pajarito. Sabe-se também que caçavam ursos, veados, texugos, e outros animais selvagens americanos. Além disso são conhecidos pelo fabrico de potes de barro adornados por traços de uma estética muito própria. Ainda hoje, pedaços destes potes se vêm pelos inúmeros trilhos usados pelos caminheiros desta área. Pouco se sabe da sua cultura, além das grutas que usavam para rituais espirituais no topo de algumas montanhas. Uma destas grutas está preservada em excelentes condições no Bandelier National Monument.

Por razões desconhecidas, secas e invernos árduos são algumas das hipóteses, por cerca de 1300 os Anasazi abandonaram as suas habitações nas montanhas para se irem, supostamente, estabelecer ao longo do vale do Rio Grande. Aqui tornaram-se nos chamados Pueblos People: isto é, separaram-se em várias tribos que se organizaram em povoações ao longo do Rio Grande. A mais famosa destas povoações será o Taos Pueblo cujas casas de adobe datam a 1350. Outros povos desta área são os de Nambé, Santa Clara, Pojoaque, Tesuque, etc.

Cidade Real

O "Reino do Novo México" ficou sob a Coroa Espanhola em 1540 graças ao conquistador Don Francisco Vasques de Coronado, que por curiosidade, descobriu também o famoso Grand Canyon no estado vizinho do Arizona. Em 1598 foi entregue o cargo de Governador Geral a Don Juan de Onate, que estabeleceu a capital do Novo México no Pueblo de San Juan a cerca de 40 kilometros a norte de Santa Fe.

Após Don Onate se retirar em 1609, o novo Governador Geral, Don Pedro de Peralta, decidiu criar uma nova capital, num local onde colonos espanhóis se tinham instalado desde 1607, à qual chamou Villa Real de la Santa Fe de San Francisco de Asis. É desde então que Santa Fe, como é agora conhecida, se manteve como capital do Novo México.

Durante 70 anos a cidade cresceu com a chegada de soldados, burocratas, colonos e muitos padres Franciscanos que tentaram então converter ao Catolicismo a população de cerca de cem mil nativos das várias povoações do vale do Rio Grande. Em 1680, a população nativa revoltou-se contra os cerca de 2500 espanhóis de Santa Fe, matando cerca de 400 e afugentando o resto para o México. Santa Fe foi então saqueada e queimada, com excepção do Palácio dos Governadores, que se mantem hoje em dia na praça principal da cidade.

Os nativos ocuparam Santa Fe até 1692, altura em que Don Diego de Vargas reconquistou a região. Desde então, todos os anos em Setembro, a cidade celebra a famosa Fiesta de Santa Fe, que culmina com a procissão da Virgem Conquistadora, uma imagem de madeira da Virgem que De Vargas retornou a Santa Fe, que sai da catedral de São Francisco (sua morada presente) e termina na capela do Rosário, o local onde aquele acampou durante a reconquista.

A partir desta reconquista, Santa Fe cresceu e prosperou como cidade. O governo e os missionários, sob pressão de ataques constantes de tribos índias nómadas como os Comanche, Apache, e Navajos, fizeram uma aliança com os povos nativos do Vale do Rio Grande, mantendo-se uma política muito proveitosa de coexistência pacífica civil e religiosa.

O Caminho de Santa Fe

Em 1821 o México tornou-se independente de Espanha, e o Novo México passou a ser uma província do México, o que transformou completamente o clima de comércio de Santa Fe. Até aqui, a Coroa Espanhola manteve uma política de império fechado, que não permitia quaisquer trocas comerciais com outras nações com interesses na América como a França, a Inglaterra e, mais tarde, os Estados Unidos.

Com a independência o comércio foi aberto a mercadores americanos. William Becknell abriu então o famoso Caminho de Santa Fe (The Santa Fe Trail) de 1500 quilómetros desde Arrow Rock no Missouri. De notar, que por esta altura os Estados Unidos terminavam perto de Arrow Rock, nas margens do Rio Mississippi em St. Louis (capital original da província francesa da Louisiana que tinha sido recentemente comprada ao Rei Francês).

Entre 1837 e 1840, o Novo México ficou independente do México devido a uma revolta de agricultores, que durou apenas três anos. Durante este período, o comércio com os Estados Unidos intensificou-se, trazendo muitos novos habitantes de culturas europeias para a região o que começou a complicar as relações culturais desta.

Em 1845 os Estados Unidos professavam a doutrina do Destino Manifesto (Manifest Destiny), termo criado pelo diplomata John Louis O'Sullivan para condensar a noção de que a expansão territorial americana mais do que inevitável, era um desejo divino. Esta doutrina levou eventualmente à guerra com o México e à anexação do vizinho Texas. Naturalmente o Novo México teria que ter um destino semelhante.

O Estado do Novo México

Em 1846 o General americano Stephen Watts Kearny tomou Santa Fe, asteando a bandeira dos Estados Unidos da América no Palácio dos Governadores de Santa Fé. Em 1848 o México assinou o tratado de Guadalupe Hidalgo, que cedeu o Novo México e a California à União Americana.

Logo então a influência americana se fez sentir, quando novas gentes, os "anglos", se vieram estabelecer na nova fronteira. Com a chegada do telégrafo e o caminho de ferro, Santa Fe e o Novo México sofreram uma revolução económica dramática. Nesta altura a região foi o autêntico oeste selvagem. Foram os anos do famoso Billy the Kid, que viveu na cidade vizinha de Taos.

A Corrupção e a falta de segurança eram tais, que o presidente Rutherford B. Hayes mandou o novo governador Lew Wallace limpar o que era então o território do Novo México. Apesar das tentativas de assassinato por parte de Billy the Kid, Wallace foi sucedido na sua missão, escrevendo ainda o romance "Ben Hur", enquanto viveu no Palácio dos Governadores. Em 1912 o território do Novo México foi dividido em dois novos estados que se juntam então à União: o Novo México e o Arizona.

Durante a sua história atribulada de conquistas, reconquistas e violência da fronteira selvagem, Santa Fe foi também sempre um oásis de civilização e cultura. Os seus habitantes deixaram uma herança de arquitectura e planeamento urbano, que faz de Santa Fe a cidade historicamente mais significativa do Oeste americano. Em 1958 foi promulgada uma lei local, que obriga todas os novos edifícios da cidade a seguirem o estilo típico das casas de adobe, que é uma mistura entre as construções dos povos nativos e alguns elementos espanhois. A coabitação cultural e religiosa é também preservada fazendo de Santa Fe um dos espaços urbanos mais fascinantes do mundo.

Cidade de Artistas e Milionários

Outra faceta de Santa Fe é a sua reputação como cidade de artistas. Desde o início do século que Santa Fe tem sido um refúgio de pintores, escultores, escritores, músicos, e artistas de artesanato de calibre internacional. Escritores tais como D.H. Lawrence, Mary Austin, Jack London, e Ezra Pound viveram ou visitaram frequentemente a região. Pintores como Edward Hopper e Marsden Hartley, e o fotógrafo Ansel Adams, viveram em Santa Fe nas décadas dos anos 20 e 30. Talvez a mais conhecida de todos os pintores que passaram por esta região será Georgia O'Keeffe que aqui viveu de 1930 a 1986, quando faleceu com 98 anos de idade. As suas pinturas de flores e paisagens locais são porventura os seus melhores cartões postais. Hoje em dia Santa Fe alberga mais de 150 galerias de arte que mostram trabalhos de alguns dos mais reputados artistas internacionais.

Também na música esta cidade encanta. Viveram aqui os compositores Aaron Copland e Igor Stravinsky, que trabalhou frequentemente para a famosa Ópera de Santa Fe. Esta companhia de ópera actua num anfiteatro ao ar livre, com uma vista magnífica das montanhas Sangre de Cristo e sob os céus estrelados do planalto deserto. A sua temporada no Verão conta normalmente com um elenco fabuloso, oriundo de várias Óperas mundiais que fecham por esta altura do ano.

Mais recentemente, Santa Fe tem atraído muitos artistas de Hollywood, tais como Julia Roberts e Gene Hackman entre muitos outros, que aqui vivem grande parte do ano. Alguns destes artistas terão vindo ao encontro de uma forma de vida mais espiritual, uma vez que esta área é famosa por atrair todo o género de actividades "New Age" e para-normais, bem como uma grande variedade de religiões alternativas. Afinal, Roswell, a famosa terra onde segundo o folclore moderno se terá despenhado uma nave espacial extra-terrestre, está a uns 70 qilómetros de Santa Fe. Talvez por esta razão terá Shirley MacLein feito de Santa Fe a sua casa.

Além de artistas, Santa Fe atrai também muitos milionários que por aqui vêm descansar das suas rotinas desgastantes. Por esta razão, Santa Fe possui alguns dos melhores restaurantes dos Estados Unidos, bem como inúmeros estabelecimentos onde se pode encontrar tudo o que qualquer Yuppie possa desejar, sem nunca estar a mais do que alguns poucos metros de poder saborear alguma permutação de cappuccino com um "mocha latte" ou sushi vegetariano.

Beleza Natural e Desporto

Quando o Novo México se tornou num estado da união americana, muita gente foi atraída pelo clima seco (50% de humidade relativa média) de Santa Fe, como cura para a tuberculose. Mas não se pense que o Novo México é apenas um deserto cheio de cactos. Devido à altitude Santa Fe (a cerca de 2000 metros acima do nível do mar) conta com quatro estações distintas incluindo um Inverno com neve, flores selvagens na Primavera e Verão e cores vibrantes das folhas que caem no Outono.

Com mais do que 300 dias de sol por ano, o clima é ideal para praticar um grande conjunto de desportos ao ar livre. O Inverno é conhecido por um frio muito seco, que é bastante tolerável e faz a neve desta região muito leve, perfeita para a prática do ski. O Verão é conhecido pelos seus dias quentes e noites frescas. De facto, mesmo no Verão é aconselhável usar um casaco leve à noite, apesar das temperaturas diárias normalmente ultrapassarem os 30ºC. A maior parte da chuva cai no Verão, tipicamente entre as 4 da tarde e 8 da noite, devido a um clima de monção muito particular.

Num raio de 90 kilometros de Santa Fe encontram-se uma série de parques e florestas nacionais, extremamente bem cuidados pelo governo federal americano. Nestes parques, alguns ao longo do vale do Rio Grande, encontram-se muitas áreas especialmente preparadas para a prática do canoismo ou outros desportos aquáticos afins num cenário deslumbrante. O ciclismo, alpinismo, montanhismo, e caminhismo são também amplamente praticados nesta região.

No Inverno o desporto rei é o ski e o snowboarding, ou outros desportos de neve. Existem mais de dez áreas de ski no norte do Novo México. Com o sol e a neve seca das montanhas rochosas a qualidade destas estâncias de ski é muito difícil de igualar noutras partes do mundo. A estância de ski da floresta de Santa Fe tem o seu cume a cerca de 4000 metros de altitude, oferecendo uma vista sublime até às fronteiras do Arizona e do Colorado. A sensação de fazer ski rodeado de tal vista é indescritível. Mas a montanha mais conhecida dos aficionados do ski, é a montanha de Taos, onde o ski é do melhor nível mundial, mas demasiado íngreme para principiantes. Além disso, Taos não aceita a prática do snowboarding.

Los Alamos e a Bomba

Los Alamos, 6 de Agosto de 1945 -- "Attention please! Attention please! One of our units has been successfully dropped on Japan." Foi assim que a bomba, de alcunha "Little Boy", que destruiu Hiroshima foi anunciada nos autifalantes da então cidade secreta de Los Alamos. Hoje em dia a cidade é dominada pelo Los Alamos National Laboratory (onde trabalho). No Museu Ray Bradbury podem-se ver réplicas das bombas que destruíram Hiroshima e Nagasaki.

Um outro museu, o Los Alamos Historical Museum, é dedicado mais ao cariz humano da história desta cidade que começou precisamente no edifício onde este museu se encontra: um antigo colégio que funcionou entre 1918 e 1941, onde rapazes ricos eram entregues a uma educação rija.

Em 1922, o famoso professor da Universidade da Califórnia em Berkeley Robert Oppenheimer passou por este colégio, quando fazia montanhismo nesta região. Em 1941, depois de Einstein ter avisado o Presidente Rooselvelt de que os cientistas de Hitler andavam a purificar uranio-235 para construir uma bomba atómica, Oppenheimer foi encarregado pelo governo americano de escolher um lugar isolado para um laboratório onde se iria desenvolver a primeira bomba atómica. Foi então que Oppenheimer se lembrou do colégio de rapazes, que mandou fechar para poder albergar os cientistas e militares que faziam parte do projecto Manhattan.

Nos três anos seguintes o pequeno colégio foi aumentado com uma série de edifícios pré-fabricados, criando então a cidade super-secreta de Los Alamos. Tão secreta era esta cidade, que aos cientistas convidados a aqui trabalhar, como Enrico Fermi, Richard Feyman e Niels Bohr, foram dados apenas documentos de identificação como cartas de condução, sem nomes e apenas com números. A cidade oficialmente não existia, o seu correio era entregue numa caixa postal em Santa Fe. Mesmo os empregados contractados para a limpeza do lixo, só eram empregados se fossem analfabetos.

Na madrugada do dia 16 de Julho de 1945 o segredo foi aberto com a detonação da primeira bomba atómica no deserto do sul do Novo México, no Trinity site. A fronteira da idade atómica tinha sido passada. A censura ao correio de Los Alamos acabou em Dezembro de 1945, e em 1948 a cidade deixou de ser militarizada e passou para o governo civil. Os portões que mantinham a cidade fechada foram removidos em 1957.

Naturalmente, muita da investigação que aqui se faz é ainda "Top Secret", o que leva a muita especulação por parte do público. Por exemplo, a famosa área 51 (para quem vê os ficheiros secretos) que supostamente alberga as naves espaciais extraterrestres que caíram na Terra, é objecto de grandes discussões por parte de ovniologistas e outros amantes de teorias de conspirações.

Um dia ao passear-me pela internet descobri uma foto de um edifício, supostamente da área 51, que alguém dizia ser o local do laboratório onde uma máquina do tempo extraterreste se encontraria. A curiosidade é que a foto mostrava o edifício onde trabalho que nada tem de secreto. A área 51 é na realidade a "radiation exposure facility". Áreas secretas haverá, mas se lá tivessem uma máquina do tempo, talvez Sadam Hussein não estivesse no poder, nem o Presidente Clinton estaria envolvido no Monica-gate...

Hoje em dia a cidade, que tem a maior concentração de professores doutorados nos Estados Unidos, ainda alberga o Laboratório de Los Alamos. Com o final da guerra fria, a missão do Laboratório virou-se mais para o desmantelamento e monitorização dos arsenais nucleares mundiais. Los Alamos parece ser hoje em dia uma cidade como outra qualquer, mas historicamente nunca o poderá ser.

Complexidade: Ciência na Fronteira do Caos

O que me trouxe a esta parte do mundo foi um convite para visitar um novo local de pesquisa científica onde novas fronteiras se reconhecem e se tentam ultrapassar: O Santa Fe Institute.

O Instituto de Santa Fe foi criado em 1984 por um dos membros do Project Manhattan, George A. Cowan, que ajudou Enrico Fermi a demonstrar ser possível manter uma reacção em cadeia. A ideia de Cowan foi criar um instituto privado, de fins não lucrativos, onde se podem estudar problemas complexos de maneira interdisciplinar não constrangida pela tradicional compartimentalização académica. O objectivo do Instituto é criar um mecanismo de transmissão de um conjunto de ideias e metodologias conhecidas como Ciências de Complexidade, por entre as disciplinas tradicionais. Desta forma, Cowan reavivou os objectivos do movimento cibernético dos anos 50 e 60, agora aliados a um novo conjunto de ferramentas tais como computadores poderosíssimos.

Cowan juntou um conjunto de cientistas impressionante: Murray Gell-Mann, prémio Nobel da física mais conhecido pela descoberta das partículas sub-atómicas chamadas "quarks" - Gell-Mann retirou esta palavra do romance Finnegans Wake, de James Joyce; Philip Anderson, prémio Nobel da física pelo seu trabalho em matéria condensada; Kenneth Arrow, prémio Nobel da Economia; o economista Brian Arthur; o biologo Stuart Kauffman, o informático John Holland e outros. Estes cientistas, e muitos outros convidados a visitar o Instituto, trabalham na descoberta de padrões e regularidades que se repetem numa variedade de fenómenos físicos e computacionais, desde o estudo de colónias de insectos, até ao estudo da propagação de informação nos mercados económicos.

A ideia que popularizou(1)a pesquiza científica nesta área é resumida pelo termo "Fronteira do Caos" (The Edge of Caos). Basicamente, esta frase reflecte a intuição de que os sistemas complexos, incluindo a própria vida e a mente, se encontram numa faixa de transição entre sistemas cujos componentes estão organizados de forma a não poderem variar muito de estado e sistemas cujos componentes podem variar muito e de forma imprevisível.

Esta ideia usa geralmente como analogia a transição entre os estados sólido (átomos bastante fixos em configurações que variam pouco) e fluído (átomos com muito maior autonomia e aleatoriedade). A ciência da complexidade, tal como o movimento cibernético dos anos 50, propõe que este fenómeno de transição não é uma propriedade dos componentes ou da matéria específica de um dado sistema, mas sim da organização destes componentes. Assim, os mesmos fenómenos, os mesmos padrões de organização, são encontrados nos mais variados sistemas, desde a biologia à economia.

Estes padrões comuns caem em geral em dois tipos de sistemas diferentes: sistemas evolucionários e sistemas auto-organizados. Presentemente, os debates travados em várias áreas científicas, desde a biologia à psicologia e sociologia, centram-se na discussão da relativa importância do algoritmo evolucionário (genético) de Darwin ou da auto-organização(2)na formação de estruturas naturais. Ambos os tipos de sistemas são estudados de forma abstracta no Instituto de Santa Fé. Isto é, estes dois tipos de sistemas são estudados não pela especificidade dos seus componentes, mas pela organização dos mesmos. Esta forma interdisciplinar de fazer ciência fez de Santa Fe, a cidade sempre na fronteira, o seu lar natural.

Robots, Super-Computadores e outras Mitologias do Futuro

Quando o presidente Clinton precisou de uma manobra de distracção para fugir do centro do escândalo "Monica-gate", a solução foi uma visita quase surpresa ao Laboratório de Los Alamos onde poderia brilhar no meio do melhor que a tecnologia americana tem para oferecer, ao anunciar um aumento audacioso do investimento federal nas tecnologias de informação.

De facto, muito do futuro tecnológico se fabrica aqui neste estranho deserto mágico. Os super-computadores do laboratório passam dia e noite a trabalhar nos problemas mais difíceis com que a ciência se defronta, tais como a simulação do problema do enrolamento proteíco (protein folding), a identificação do mapa genético humano, estudo do vírus HIV etc.

A Vida Artificial, como forma diferente de fazer biologia teórica à maneira das ciências da complexidade, é outra forte vertente da investigação aqui. O campo foi criado por Chris Langton durante o seus estudos de pós-doutoramento em Los Alamos, em 1987. Este campo hoje em dia inclui o estudo de sistemas autónomos tais como robots e programas, chamados agentes, que se passeiam por ambientes computacionais, tais como a Internet, de forma independente.

A Vida Artificial baseia-se na ideia de que o essencial da vida, como a conhecemos, não se centra nos componentes dos organismos vivos, mas sim na organização destes componentes. Isto é, a vida não é uma consequência da matéria orgânica terrestre, que é apenas uma possível realização da vida em componentes de carbono, mas poderá ser realizada com outros componentes desde que se estabeleça a tal organização que sustém a vida. Este campo científico interdisciplinar tenta descobrir qual será essa organização necessária.

A ideia de vida como organização não é exactamente nova, mas foi inicialmente avançada de uma forma ciêntifica pelo génio matemático-informático John Von Neumann, também ligado a Los Alamos e ao qual se deve a arquitectura computacional dos computadores digitais(3)

Hoje, ao passear pelo laboratório do canadiano Mark Tilden que ao longo dos últimos anos tem construído uma fauna impressionante de robots, desde os que são utilizados para limpar os vidros de sua própria casa, até às aranhas artificiais, utilizadas para destruir minas, que só param quando já não têm pernas, noto que a distinção entre a vida orgânica e a vida artificial se vai tornando cada vez mais ténue. Ao ver estas criaturas a adaptarem-se e a aprenderem os caminhos que aqui existem pelo menos desde os índios Anasazi, simultaneamente assusto-me e entusiásmo-me com a não tão longinqua fronteira a que provavelmente se chegará mais uma vez nesta terra encantada de Santa Fe.

Texto e Fotografias por Luis Rocha (Copyright).

Footnotes

1. Especialmente pelo livro de Mitchell Waldrop "Complexity: The Emerging Science at the Edge of Order and Chaos", e anteriormente por Warren Weaver no artigo de 1948 intitulado "Science and Complexity", em que a ideia de fronteira do caos foi definida como complexidade organizada.

2. O fenómeno da auto-organização foi inicialmente estudado pelo cibernético Heinz von Foerster, e estudado mais tarde por muitos investigadores tais como Haken, o prémio Nobel Ilya Prigogine, os biologos cibernéticos Francisco Varela e Humberto Maturana, e o biologo do Instituto de Santa Fé Stuart Kauffman que muito fez pelo renascimento desta ideia recentemente, entre outros.

3. Esta ligação a Los Alamos tem a ver com o trabalho desenvolvido com o cientista Polaco Stanislaw M. Ulam com o qual Von Neumann desenvolveu a ideia de autómatos celulares.


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Last Modified: September 02, 2004