Ciência 2.0: do elitismo à decisão coletiva


Luis M. Rocha1,2

1Center for Complex Networks and Systems, School of Informatics & Computing, Indiana University, Bloomington IN, USA
2Instituto Gulbenkian de Ciencia, Portugal

Citation: L.M. Rocha [2014]. "Ciência 2.0: do elitismo à decisão coletiva". Expresso. 8 Fevereiro, 2014, pp. 35.

O artigo publicado é uma versão curta do artigo publicado aqui (também em pdf), que contém referências a dados mencionados.

Keywords:Science of science, policy

Muito se tem falado sobre os recentes cortes nos números de bolsas de doutoramento e pós-doutoramento atribuídas pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). O que está aparentemente em causa não é uma redução do orçamento disponível, mas uma mudança de política. Em entrevista ao Expresso, Leonor Parreira, Secretária de Estado da Ciência, defendeu a estratégia de “reforçar a seletividade e exigência da qualidade,” confirmando que o governo introduziu “mecanismos de maior competitividade e exigência qualitativa em todos os concursos FCT.” A ênfase na qualidade da ciência patrocinada pelo Estado está na ordem do dia em todos os países desenvolvidos nesta matéria e só difere em grau da política anterior. Sem dúvida os dirigentes máximos do Ministério e da FCT, pelos quais tenho o maior respeito e admiração, estão atentos e respondem de forma previsível a este zeitgeist.

No entanto, existem problemas sérios com esta ênfase na qualidade que estão demonstrados em muitos estudos numa nova área chamada Ciência de Ciência. Logo à partida existe a ironia do conceito de qualidade não ser um conceito científico—pelo menos nas ciências ditas exatas ou duras. Dado que o conceito de “qualidade” não é científico, o que se usa é um seu substituto mais mensurável: o impacto. Na prática, “qualidade” e impacto são supostamente medidos pelo processo de avaliação por pares (peer-review), que é suposto prever o impacto futuro de investigação proposta ou feita no presente.

Há pelo menos três tipos de impacto: económico, social e académico. As sociedades estão mais interessadas no primeiro, enquanto os pares académicos estão mais interessados no terceiro. O impacto social é algo com que, para o bem e para o mal, só nos preocupamos a posteriori, mas os outros dois não estão necessariamente alinhados. Por exemplo, Charles Darwin teve o maior impacto académico possível, mas Alan Turing e John Von Neumann (inventores da computação) tiveram muito maior impacto económico (e até social) dada a revolução da era da informação em que vivemos e que eles causaram. Mas mesmo no que diz respeito ao impacto académico— como substituto mensurável de “qualidade”— estudos estatísticos demonstram que o processo de avaliação por pares não funciona de todo a prever o impacto académico futuro a partir de investigação (e propostas de investigação) no presente. Por exemplo, as pontuações de avaliadores da National Science Foundation (NSF) nos Estados Unidos da America não são significativamente correlacionadas com sucesso da investigação [1], e o mesmo se passa com os National Institutes of Health (NIH) [2]. Em geral, o processo de avaliação por pares não é, comprovadamente, eficaz a prever sucesso tanto para avaliação de projetos[3]como para publicação de artigos[4]. É de facto estranho que cientistas que são treinados a acreditar em nada que não seja baseado em evidência, acreditem tanto na capacidade de identificar “qualidade” utilizando este processo, que é em última análise baseado em fé em vez de evidência[4].

Além da falta de eficácia, este processo (algo quixótico) de tentar medir e prever a qualidade de investigação futura é caro e elitista[5]. Uma parte substancial do orçamento destinado à Ciência é gasto a manter as máquinas de avaliação de “qualidade” como a FCT ou a NSF—em alguns casos cerca de metade do orçamento de Ciência é destinado simplesmente a manter estas organizações, os seus painéis de avaliação, e gestão de projetos após aprovação dos mesmos. O elitismo deriva naturalmente do facto de termos pessoas a escolher pessoas. Como qualquer outra pessoa, os cientistas tendem a preferir pessoas que concordam com o que eles concordam, derivam das mesmas famílias académicas, ou têm o pedigree considerado melhor (os MIT, Harvard, Oxford, etc.) Por exemplo, apesar de Turing e Von Neumann terem tido um impacto económico e social espantoso, a elite do meio académico (as academias e conselhos nacionais de Ciências e similares) tende a ter uma representação muito mínima das áreas da computação e informática. Em Portugal, o Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia, no Século XXI, não tem um único doutorado em Informática ou Computação [6] — incluindo a Robótica que impulsiona muito provavelmente a próxima revolução [7] e uma área em que Portugal é bastante forte. A nível Mundial, também não há um prémio Nobel nesta área, por exemplo.

Assim, a ênfase na “qualidade” tende no melhor dos casos ao elitismo e no pior à consanguinidade académica (vulgo inbreeding). Em ambos os casos, o que se perde é a diversidade de soluções para problemas científicos, tecnológicos e sociais. Este problema torna-se naturalmente pior no contexto de afunilamento de fundos, uma vez que são poucos os projectos que recebem a maioria do financiamento. Além disto, os cientistas são influenciados pelos seus pares no processo de avaliação (vulgo "carneirismo"), levando a escolhas erradas numa Ciência que não é necessariamente autocorrectiva [8]. A sociedade civil que paga a Ciência tem direito de exigir algo melhor. Noto que as soluções de governos anteriores sofrem no essencial do mesmo problema, apesar da nova política ser aparentemente mais radical no afunilamento de fundos. Aliás, as Universidades portuguesas (e os governos anteriores) não se preocuparam muito em reduzir o escandaloso inbreeding de que padecem—possivelmente a maior causa de fuga de cérberos de Portugal... Também devemos refutar comentários do género dos do Ministro da Economia Pires de Lima, culpando a falta de integração de doutorados nas empresas Portuguesas no pretenso “conforto” destes no meio académico. Para avaliar o tal conforto, só se pede a quem partilha desta opinião que faça a experiência de viver um mês apenas do montante de uma bolsa de pós-doutoramento. No que diz respeito às empresas, o que é necessário é que os grandes empresários Portugueses saiam do conforto (esse sim) de investimentos com riscos assumidos pelo estado (tipo PPP), das cadeias de supermercados e lojas, e arrisquem o seu capital em tecnologia de ponta e no contrato de doutorados para investigação e desenvolvimento. Não foi o Walmart ou a Budweiser que deram origem à Microsoft, Apple ou Google, mas sim o capital de risco. Quando virmos os grandes grupos de empresários portugueses criar um laboratório tipo Bell Labs ou Xerox PARC, onde nascerem tantas das tecnologias que transformaram o Mundo, talvez se possa deixar de falar de “conforto”.

Olhemos então para as soluções alternativas de financiamento da ciência que existem, baseadas em evidência. A forma mais fácil de ter uma ciência forte ao serviço da sociedade é a quantidade. Primeiro, o que é demonstravelmente produtivo é simplesmente investir. Quanto mais dinheiro é gasto em ciência, mais produtiva esta é. Aliás, esta correlação é a única estatisticamente significativa que se obtém de estudos sobre o impacto de investimentos em ciência—independentemente da “qualidade” vislumbrada por pares que não prevê impacto de forma significativa[1][2]. Em segundo lugar, ao contrário do afunilamento de fundos para “elites de qualidade” que parece ser a nova política da FCT, é da diversidade de projectos académicos que nasce a criatividade, interdisciplinaridade e em última análise o impacto económico[9][10]. De facto, ninguém pode dizer que foi da elite académica que saíram Bill Gates, Steve Jobs e mesmo Larry Page, Sergey Brin e Mark Zuckerberg. Do que eles beneficiaram foi da educação académica americana—a chamada educação liberal—que é baseada na extrema diversidade de estudos académicos, desde as Humanidades até às Ciências. Portanto, a quantidade e variedade de investigação disponível, e as suas combinações, são um factor de impacto e sucesso.

Finalmente, o financiamento da ciência em quantidade e diversidade não precisa de ser cego. Pode ser reforçado e gerido de forma automática e muito mais económica, utilizando o comportamento colectivo dos próprios cientistas (não só as suas elites). Das soluções que têm sido propostas, a minha favorita, por ser baseada num método comprovado, é a solução Google. Mais concretamente, um sistema alternativo de financiamento baseado no algoritmo utilizado originalmente por esta empresa para fazer o ranking das páginas da Web mais relevantes para determinada busca de informação: o PageRank. Como deveras comprovado, este algoritmo utiliza o padrão de ligações na Web para decidir o que é mais relevante. Em vez de contratar anotadores humanos que indicam o que devemos ler (um pouco como o “oráculo hierárquico” que era o Yahoo! inicialmente), a Google fez toda a diferença com este algoritmo porque depende do comportamento colectivo de toda a Web. Isto é, não há elites de anotadores que nos dizem o que ler. A recomendação é uma decisão colectiva de todos nós que fazemos links na Web, em blogs, jornais e páginas pessoais e de interesse público. Em espírito, semelhante à Wikipedia e o movimento crowd-sourcing: o poder da decisão colectiva. Ao contrário da avaliação por pares, todos nós que já utilizamos o Google sabemos que este sistema funciona: na maioria das vezes, as páginas mais relevantes aparecem no topo da lista de resultados. Que o digam todos os outros motores de pesquisa (Altavista, Sapo, Yahoo!, Bing), que ou se adaptaram a um modelo semelhante ou desapareceram.

Recentemente, um grupo de colegas na Indiana University, propôs um mecanismo semelhante (o FundRank) para financiamento da Ciência[3][5]. Em vez de links, todos os cientistas de um sistema nacional (considerados com habilitações e capacidade para ser investigador) recebem um montante fixo: o orçamento dedicado à Ciência dividido pelo número de cientistas. Uma parte desta pensão é para eles, a outra parte é obrigatoriamente distribuída por outros cientistas no sistema à sua escolha. Não é permitido distribuir por cientistas na mesma organização (não ao inbreeding). Também se pode introduzir mecanismos que recompensem valores políticos considerados importantes (por exemplo interdisciplinaridade, proporção de minorias, e até temas científicos), cujos resultados podem ser avaliados no processo democrático. De forma análoga ao PageRank, em que links para uma página funcionam algo como votos de confiança na sua relevância, no FundRank os fundos distribuídos colectivamente funcionam como votos de reconhecimento pela investigação. As vantagens são óbvias: mais dinheiro e tempo para a Ciência porque não haveria painéis de avaliação nem burocracias para alocar e gerir projectos; um mecanismo natural contra o elitismo e inbreeding; e acima de tudo um sistema que sabemos ter sucesso demonstrável a identificar o que é relevante, neste caso, o impacto se não a “qualidade”—algo que sabemos falha, também demostravelmente, no sistema actual.

Depois da revolução informática dos últimos 60 anos, está na hora de se experimentar uma Ciência 2.0 baseada na tecnologia comprovada e no conhecimento actual de sistemas complexos. Naturalmente a solução mencionada aqui é apenas uma das possíveis dentro do mesmo espírito, e que necessitaria de ser bem pensada e trabalhada antes da implementação [11]. Mas o resultado traria com certeza diversidade, impacto, e maior igualdade de acesso a fundos. Uma vez que o sistema científico Português sério está no seu início, porque não testar uma destas alternativas, em vez de seguir o que é (mal) feito noutros países? Assim como houve países que passaram directamente da falta de telecomunicações para a Internet móvel, porque não Portugal ser impulsionador de uma Ciência 2.0 baseada na decisão colectiva? Afinal, o Infante Dom Henrique não impulsionou os descobrimentos a copiar os grandes reinos Europeus da época.


Referências

[1]Scheiner, S.M. and L.M. Bouchie [2013]. “The predictive power of NSF reviewers and panels”. Frontiers in Ecology and the Environment 11: 406-407. http://dx.doi.org/10.1890/13.WB.017

[2] Mervis, J. [2014]. "Peering Into Peer Review." Science. 343 (6171), 596-598. DOI:10.1126/science.343.6171.598

[3] Bollen J, Crandall D, Junk D, Ding Y, Borner K. [2014] “From funding agencies to scientific agency: Collective allocation of science funding as an alternative to peer review”. EMBO Rep. DOI: 10.1002/embr.201338068

[4] Smith, R. [2010] “Classical peer review: an empty gun”. Breast Cancer Research, 12(Suppl 4):S13. doi:10.1186/bcr2742

[5] Para ver o quanto este assunto tem sido estudado, além das referências 2 e 3, ver, por exemplo, as referências 3-17 em http://arxiv.org/abs/1304.1067 (versão mais longa de referência 2)

[6] Composição do CNCT (04/02/2014): http://www.cnct.pt/#!membros/c6lv. Tabela com informação por área de investigação. Distribuição por área doutoramento: Ciências da Vida (7), Ciências Humanas (5), Física ou Química (3), Engenharia Química ou Materiais (2), Ciências do Mar (1), Matemática (1). Distribuição por filiação presente: Ciências da Vida (8), Ciências Humanas (6), Física ou Química (2), Engenharia Química ou Materiais (2), Ciências do Mar (1), Matemática (1).

[7] Brynjolfsson, E. and A. McAfee [2014]. The Second Machine Age: Work, Progress, and Prosperity in a Time of Brilliant Technologies. Norton.

[8] Park, I., M.W. Peacey, and M. R. Munafo [2014]. "Modelling the effects of subjective and objective decision making in scientific peer review." Nature 506, 93-96. doi:10.1038/nature12786

[9] Fleming, L. "Perfecting Cross-Pollination." Harvard Business Review 82, no. 9 (September 2004): 22-24.

[10] Powell, W., J. Owen-Smith, D. White, K. Kopout (1996). "Interorganizational collaboration and the locus of innovation: networks of learning in Biotechnology". Administrative Science Quarterly 41(1):116-45.

[11] Mervis, J. [2014]. "Making Every Scientist a Research Funder." Science. 343 (6171), 598. DOI:10.1126/science.343.6171.598


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Last Modified: February 9, 2014